A expansão dos diagnósticos: acúmulo de conhecimento ou aprisionamento pela ciência?
Autora: Júlia Catani - Toda classificação é melhor que o caos (Levi-Strauss, 1970)
Atualmente muito se discute acerca do diagnóstico que, por definição, compreende o conhecimento das características de uma doença e a descrição de seus sintomas. Esse instrumento de análise e descrição de algo disfuncional, pode ser encontrado em diversos campos de saber e, principalmente, na interdisciplinaridade de áreas como a psiquiatria, a psicologia, a psicanálise, entre outros.
A psiquiatria, assim como todas as outras especialidades da saúde mental, tem dentre suas tarefas a de desenvolver sistemas de classificação para facilitar o diagnóstico e a terapêutica dos transtornos mentais. Este trabalho objetiva discutir as modificações ocorridas na categoria Transtornos Somatoformes no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) desde a primeira edição, bem como o percurso realizado na classificação no campo da psiquiatria e quais as possíveis implicações a este respeito.
Nos Estados Unidos, nas duas primeiras décadas do século passado a união das nomenclaturas dos transtornos psiquiátricos se como tentativa de superar a falta de padronização, uma vez que, cada instituição de saúde mental no país utilizava uma nomeação específica relativa ao local e centro de estudo no qual era utilizado.
No início da década de 20 do mesmo século, a comunidade americana de psiquiatras estudou a necessidade da criação de um sistema único de classificação que pudesse garantir a possibilidade de que todos os integrantes da APA se referirem a um mesmo quadro clínico, a mesma descrição de sintomas e a mesma enfermidade, o que, por conseguinte preveniria falhas. Portanto, desde 1920 foram criados nos Estados Unidos, manuais na tentativa de solucionar tais dificuldades.
Com a Segunda Guerra Mundial a necessidade de uma padronização precisa se mostrou ainda mais essencial, tendo em vista que, foram surgindo demandas psicossociais específicas e do âmbito da saúde mental (APA, 1952).
Para criar algo mais fidedigno à realidade dos profissionais que atuavam com transtornos mentais, a Comissão de Nomenclatura e Estatística da Associação de Psiquiatria Americana em 1950 reuniu um compêndio de informações e sugestões de psiquiatras associados à instituição, o material recolhido, deu origem a publicação do primeiro Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM).
A segunda versão do DSM tornou-se viável mediante o sucesso e alcance que a primeira versão obteve, sendo utilizado em outros países que não apenas os Estados Unidos.
A partir de novas melhorias, o uso do manual alcançou de forma plena hospitais e clínicas psiquiátricas, consultórios particulares, centros de serviços comunitários, entre outros. O DSM-I serviu também como um auxílio estatístico para a codificação de registros de casos psiquiátricos, na estabilização de livros didáticos e na literatura profissional (APA, 1968).
Na segunda edição inicia-se uma descrição detalhada da neurose e quais as suas implicações para a psiquiatria. Segundo o manual, a ansiedade é a principal característica das neuroses, podendo ser expressa diretamente, pelo controle do inconsciente, por deslocamento, por conversão ou outros mecanismos psicológicos.
As neuroses, ao contrário das psicoses, não produzem uma distorção ou uma má interpretação da realidade externa, uma eventual exceção a isso pode ocorrer na neurose histérica, em que podem ser encontrados alucinações ou outros sintomas semelhantes aos da psicose, embora os pacientes neuróticos mesmo que severamente prejudicados estejam conscientes de sua perturbação mental. Parte destas explicações etiológicas podem ser compreendidas, à medida em que, nesta época, os psiquiatras e demais editores eram associados a alguns membros de instituições psicanalíticas (APA, 1968).
A terceira edição do manual, lançada em 1980 foi considerada na história da psiquiatria moderna como sendo a mais revolucionária, promoveu a criação de diversas categorias e nomenclaturas para o critério diagnóstico, e, a extinção de determinados termos, de modo a não remeter às categorias etiológicas. Por exemplo: a palavra histeria neste momento já não é mais citada; o termo neurose e a nomenclatura de doença mental foram substituídos por transtorno mental, com o fim de evitar estigmas e preconceitos relativos à loucura.
Frente às novas reformulações houve controvérsia quanto à supressão do termo neurose, um dos conceitos primordiais da teoria psicanalítica, que após a década de 80 deixa o DSM. Para os reformadores do DSM-III, a noção de neurose tornara-se vaga e não científica, o fato gerou discordância tal entre os reformadores e o Conselho de Administração da APA, que se correu o risco de não chegar a um acordo com os psicanalistas para finalizar a edição. Um compromisso político de reutilização do termo foi assumido, inserindo-se o termo neurose entre parênteses, em alguns casos, depois da palavra desordem. O DSM-III admite, pela última vez, o emprego da neurose como categoria clínica (APA, 1980).
A terceira edição do DSM, assim como as seguintes versões, está pautada em concepção a-teórica das categorias desenvolvidas, pois, grande parte das patologias apresentadas não tem por objetivo apreciar causas e a etiologia especifica dos distúrbios, e, apenas em transtornos claramente estabelecidos, são feitas descrições específicas. As categorias apareceram com diagnósticos mais específicos e com maiores subdivisões em cada uma das nomenclaturas, o que permite maior precisão na classificação e diagnóstico.
Na terceira versão do manual aparece a nomenclatura de distúrbios somatiformes, que consistem em sintomas físicos que sugerem alterações fisiopatológicas, embora não existam causas orgânicas demonstráveis ou mecanismos funcionais conhecidos, observam-se claramente disfunções psíquicas e mentais que extrapolam o campo da intenção ou simulação (APA, 1980).
Na quarta edição são feitas algumas mudanças na tentativa de ressaltar que o transtorno mental que uma pessoa pode vir a apresentar faz parte de uma condição atual (é situacional e não necessariamente constitutiva da pessoa), e não a caracteriza enquanto sujeito, assim como aparecia no DSM-III-R. Os distúrbios somatiformes tal como eram chamados são agora nomeados como transtorno somatoforme.
O DSM-IV consiste numa versão na qual as preocupações foram descrever os transtornos mentais; definir diretrizes diagnósticas precisas; ter como eixo norteador um modelo sistemático a-teórico sem preocupação com a etiologia dos transtornos; descrever as patologias incluindo os âmbitos psicossocias; e por fim, uma linguagem comum, para comunicação adequada entre os profissionais da área de saúde mental e o incentivo à pesquisa (APA, 2000).
A partir da reconstrução do percurso histórico do conceito de transtornos somatoformes no DSM é possível observar significativas mudanças ao longo das quatro edições já publicadas. Na primeira edição, é possível localizar a definição das doenças nas quais não havia um prejuízo significativo no funcionamento mental. Elas eram chamadas de doenças do sistema nervoso.
Em edições anteriores ao DSM, em manuais de algumas instituições os transtornos psiquiátricos de origem psicogênica ou sem comprometimento do tecido cerebral, eram concebidos como desordens psicofisiológicas anatômicas e viscerais. Tais designações, atualmente levam em consideração o envolvimento de fatores somáticos.
Com a preocupação destes novos tipos de compreensão do sujeito, foram elaborados quatro manifestos na Argentina, no Brasil, na Espanha e na França em prol de reflexões acerca do uso que tem sido feito mundialmente do DSM.
Para eles, fica evidente a diferença entre a versão do DSM-II que tinha uma psicopatologia dinâmica e a versão do DSM-III que neutraliza os termos da psicanálise. A neutralização se mantém, aliás, nas edições subsequentes. Isto tem como resultado favorecer uma metodologia descritiva, sem conceitos psicológicos e uma classificação objetiva, clínica e científica dos grandes campos da psicopatologia. Tal aparato excessivamente descritivo contradiz os princípios das ciências envolvidas, quer da natureza, quer as humanas.
Os editores do manual afirmam uma ideologia a-teórica que sustenta a prática diagnóstica, pois somente é necessária a listagem de sintomas, sem levar em conta as estruturas nas quais estes estejam ancorados. Basta destacar estes transtornos de suas estruturas subjetivas para que uma hipótese de causa orgânica se imponha. Nas versões anteriores do DSM-III, uma categoria clínica tão constante quanto a histeria, cuja consistência foi confirmada pela experiência desde a antiguidade, foi suprimida (AGUERRE et al, 2011).
A partir do estudo deste compêndio psiquiátrico é possível compreender que as manifestações descritas se referem à cultura americana e as suas normas embora essas classificações de psicopatologia tenham uma ambição e um alcance internacional. De acordo com o DSM e a instauração de valores predizíeis cada um seria um paciente potencial e suscetível a tratamentos preventivos. Tal extensão da patologia poderia ser reconhecida até como contrária aos Direitos Humanos (AGUERRE et al, 2011).
O DSM elimina todas as referências de uma causalidade psíquica ou histórica sem deixar espaço aos acontecimentos traumáticos da vida do paciente. Tudo é programado como se toda a vida humana pudesse ser medicalizada. A cura transferencial ou simplesmente pela palavra é invalidada como técnica terapêutica, de tal maneira que os pacientes recorrem aos riscos de procedimentos urgentes na tentativa de cura.
As primeiras causas de sofrimento psíquico podem se tornar desconhecidas, pois o uso excessivo do mesmo medicamento para causas diferentes atrelado à busca de curas emergências dificultam a compreensão de sua etiologia. E os pacientes, neste quadro, tornam-se incuráveis. O maior risco é que os alívios dos sintomas aconteçam, mas que não se tratem as causas e isto possa ocasionar a dependência farmacológica. No DSM-V se fará uma prevenção em antecipação terapêutica: não se trata mais a criança e o adolescente pelo que eles sofrem hoje, mas por um transtorno que pode um dia vir a se manifestar (AGUERRE et al, 2011).
Até o final dos anos 70 uma relativa unidade psicopatológica prevalecia. A psiquiatria clínica européia se enriqueceu graças aos aportes trazidos pela psicanálise e pela psicologia. As trocas interdisciplinares se fragilizaram depois de 1980 e de maneira infundada, uma vez que, o objeto da psicopatologia continua o mesmo.
Do ponto de vista financeiro, os tratamentos que privilegiam as relações intersubjetivas aparecem em primeiro lugar entre os mais caros do ponto de vista da infra-estrutura e do profissional qualificado. Entretanto, são esses mesmos tratamentos que podem contribuir na explicitação das causas dos transtornos e que levam em conta de modo mais fértil a dimensão humana (AGUERRE et al, 2011).
Em 2003, a maior parte das sociedades psicanalíticas francesas assinaram uma declaração em que se propunham “trabalhar em comum com profissionais da psiquiatria na construção de um referencial em psicopatologia mais de acordo com a clínica do sujeito”. Como assinala esta declaração o DSM produz uma prática que confunde o doente com a doença. Uma prática que não leva em consideração a subjetividade do inconsciente, do conflito psíquico, tanto quanto dos conceitos que mostram que nossos pacientes têm uma história e um universo relacional que são parte cativante na clínica que representam (AGUERRE et al, 2011).
É provável que clínicos atentos ao sofrimento psíquico e ao seu tratamento se confrontem hoje com o problema suplementar que constitui a imposição deste pensamento único e a sua utilização perigosa nas decisões terapêuticas, gestoras e políticas. Faz-se necessária cautela e limitação nas inflações perigosas e custosas das categorias patológicas.
É preciso resgatar a conversa clínica que foi construída durante séculos graças às trocas da psiquiatria, da psicologia, da psicanálise e da antropologia. Do contrário, como ficarão os transtornos psiquiátricos, uma vez que na nova edição do DSM haverá menos critérios para a classificação de algumas doenças? Isto poderá afetar, de algum modo os índices de patologias na população mundial?
Referências Bibliográficas:
AGUERRE, Jean-Claude; GUY, Dana et al. Le manifeste pour en finir avec le carcan du DSM. L’obligation d’une référence diagnostique au DSM nuit à la scientificité ; elle contrarie le soin psychique ; elle est coûteuse pour les Etats ; elle paralyse la recherche et l’enseignement. Toulouse: érès, 2011.
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION – APA. Diagnostic and statistical manual of mental disorders. Washington (DC), 1952.
Diagnostic and statistic manual of mental disorders. 2nd ed. Washington (DC), 1968.
Diagnostic and statistic manual of mental disorders. 3rd ed. Washington (DC), 1980.
DSM-IV-TR. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed, 2000.
LÉVI-STRAUSS, Claude (1970). A ciência do concreto. In: O Pensamento Selvagem. São Paulo: Companhia Editora Nacional.